Hoje é um dia comum, domingo de sol e chuva em Salvador.
Angela saiu pra casa de uma amiga, Ramon foi fazer prova.
Raro momento comigo mesma, em frente ao pc, e sem muita vontade de escrever, mas me sentindo na obrigação de postar algo, afinal, não é? Faz tanto tempo. Aí me lembro da pequenina conversa com meu chefe esta semana, e me animo a escrever sobre fé. Sobre Deus. Sobre como Deus é muito bom comigo, e como colocou no meu caminho pessoas especiais que fazem toda a diferença, e desta forma, minha vida ter sentido.
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Aí, por motivos que não vem ao caso, elejo uma dessas pessoas pra falar aqui.
Na verdade, é uma pessoa comum. Bem comum mesmo, cheia de medos e dúvidas e incertezas e tristezas insondáveis como qualquer outra pessoa. Ops, peraí. Não tão comum assim: ela tem um senso crítico muito aguçado, uma inteligência de causar inveja, tem a sensibilidade à flor da pele, e como diria Drummond, "apenas duas mãos e o sentimento do mundo".
Lembro-me de quando ela era pequenina, e seu sorriso já prenunciava a luz que traz hoje: quando sorria, não só seus lábios se abriam a mostrar dentes lindos - ela era toda sorrisos, os olhos, a bochecha, o corpo todo sorria e nos inundava de um sentimento que ainda hoje não sei explicar. De pequena já trazia em si um coração que não lhe cabia: embora menor, aos dois anos bateu em um coleguinha que fez a irmã mais velha chorar. Não podia ver ninguém triste, que já se punha a escalar o tristonho com mãos e pernas incontáveis, e ao chegar à altura do rosto, o segurava com as mãos, babava-o de beijos fartos, coroados por abraços quentes de seus bracinhos curtos. Ainda menina era a companheira e pau pra toda obra da irmã, que muitas vezes abusava de seu amor e generosidade: "se você contar pra mãe, maninha, ela vai me bater...". E ela se calava, e a vida continuava sem dramas, sem traumas, suas tramas.
Ela foi protagonista de infinitas histórias que hoje, todos adultos, nos matam de rir ao recordar: o sono escondido sob a cama da avó, enquanto todos desesperados procuravam por ela na vizinhança e no quintal cheio de buracos e armadilhas pra uma criança de ano e pouco; o soco inesperado nos órgãos genitais do pobre guarda da cinderela que a quis barrar na oitava vez que ia pro colo da princesa; lembrar a pinta na bunda da mãe ao ver uma bruxinha na feirinha em Curitiba; elogiar a fanta do almoço de domingo; sair sangrando no colo da mãe quando bateu pela trocentésima vez a cabeça no mesmo lugar... e tantas e tantas outras histórias!
Ela aprendeu a ler sozinha aos cinco anos, enquanto a mãe não se tocava de seu progresso na escola, cu-ti-sa-nol. Ela tinha a inocência e a ingenuidade deliciosas que a faziam tão especial "você tá nervosa, mãe?" ... grampeador na parede, "agora não, filha.".
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Mas como a Graci tá descobrindo, e um dia eu também descobri, os dias passam. Transformam-se em meses, anos, e os filhos crescem. Em determinado momento, pra eles, é muito importante sua posição no grupo e ser respeitada por ele. Aí, um dia, sua mãe faz algo que acha que é pra protegê-la, mas que a magoa muito - ainda que a amiga estivesse errada. Depois, a tia coroa esta história de maneira espetacular. E ela perde a amiga, e deve ter sido horrível pra ela. Mas é mais uma história pra contar. Como quando se mudaram, ela e a mãe, pra uma "ilha paradisíaca, a quarenta minutos de Salvador". Aquela menina, sempre tímida e insegura, desabrochou. Explodiu em cores e nuances e amigos. Bob Pop.
E sempre a melhor aluna, a mais inteligente. Sem ter que fazer força pra isso. Professores ferrando a sala toda pra ferra-la também, o que acontece? É a única que tira nota azul. Isto não me surpreende, desde pequena eu amava reuniões de pais e mestres, para ela e a irmã eram só elogios, e esta mãe que é pouco coruja inflava feito sapo cururu e saia com aquele sorriso que dizia: "Minha filha!" "Minha filha!" enquanto pais não tão sortudos suspiravam por não terem filhos assim... :)
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Na televisão, um programa de combinação. Quem descobrir os olhos, nariz, boca e cabelos escolhidos para o boneco pela produção, ganha uma moto. E caracas! Acontece de primeira! Mãe e filha na sala.
"Mãe, sabe qual a possibilidade de que isto aconteça assim, de primeira???"
"Não, filha."
Papel e lápis, algumas continhas rápidas, e uma resposta certeira, que agora me foge à memória. Você conhece alguém que goste disso? Que se divirta com isso? Pois eu conheço, e me divirto junto. E fez falta não ter prestado atenção, no último concurso que fiz, quatro questões sobre o mesmo assunto. E errei todas.
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Dividindo um apartamento em frente ao mar, dormindo ao som das ondas. A mãe, deitada na rede na varanda do quarto, no andar de cima. A filha deitada no colchão na varanda da sala, abaixo. Olhando estrelas, conversando sobre constelações, sobre a vida, sobre o mar, sobre amar, sobre viver.
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Domingos de lancha e ferry e shopping em Salvador. Lanche, cinema, sorvete.
"Meu queixo está sujo como o seu, filha?"
"Mãe!!!!!"
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Eu podia continuar falando e falando e falando.
Falando de como ela é iridescente e de como faz diferença na vida de algumas pessoas.
De como ela não é nem um pouco igual ao resto do mundo.
E de como ela faz o mundo melhor por ser como ela é.
De que não, ela não vai conseguir salvar o mundo sozinha, nem Jesus, ou Gandhi, ou Madre Tereza conseguiram.
De que ela é especial justamente por seus defeitos e qualidades. E por ter consciência dos primeiros, e tentar melhorar sempre.
De que ela é insubstituível no coração e na vida de quem a ama.
De como ela faz toda a diferença na minha vida, e de como sou uma pessoa muito melhor por ter tido o privilégio de partilhar o caminho com ela.
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Mas não vou falar nada disso.
Vou terminar com Quintana e Drummond, que amo.
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SIMULTANEIDADE
Eu amo o mundo! Eu detesto o mundo!
Eu creio em Deus! Deus é um absurdo!
Eu vou me matar! Eu quero viver!
Você é louco?- Não, sou poeta. Mário Quintana
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"No fim tu hás de ver que as coisas mais leves são as únicas que o vento não conseguiu levar: um estribilho antigo, um carinho no momento preciso, o folhear de um livro de poemas, o cheiro que tinha um dia o próprio vento..." Mário Quintana
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"Ninguém é igual a ninguém. Todo o ser humano é um estranho ímpar." Drummond
"Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo." Drummond