domingo, 28 de março de 2010

"Você é exatamente igual ao resto do mundo"

Hoje é um dia comum, domingo de sol e chuva em Salvador.
Angela saiu pra casa de uma amiga, Ramon foi fazer prova.
Raro momento comigo mesma, em frente ao pc, e sem muita vontade de escrever, mas me sentindo na obrigação de postar algo, afinal, não é? Faz tanto tempo. Aí me lembro da pequenina conversa com meu chefe esta semana, e me animo a escrever sobre fé. Sobre Deus. Sobre como Deus é muito bom comigo, e como colocou no meu caminho pessoas especiais que fazem toda a diferença, e desta forma, minha vida ter sentido.
...
Aí, por motivos que não vem ao caso, elejo uma dessas pessoas pra falar aqui.
Na verdade, é uma pessoa comum. Bem comum mesmo, cheia de medos e dúvidas e incertezas e tristezas insondáveis como qualquer outra pessoa. Ops, peraí. Não tão comum assim: ela tem um senso crítico muito aguçado, uma inteligência de causar inveja, tem a sensibilidade à flor da pele, e como diria Drummond, "apenas duas mãos e o sentimento do mundo".
Lembro-me de quando ela era pequenina, e seu sorriso já prenunciava a luz que traz hoje: quando sorria, não só seus lábios se abriam a mostrar dentes lindos - ela era toda sorrisos, os olhos, a bochecha, o corpo todo sorria e nos inundava de um sentimento que ainda hoje não sei explicar. De pequena já trazia em si um coração que não lhe cabia: embora menor, aos dois anos bateu em um coleguinha que fez a irmã mais velha chorar. Não podia ver ninguém triste, que já se punha a escalar o tristonho com mãos e pernas incontáveis, e ao chegar à altura do rosto, o segurava com as mãos, babava-o de beijos fartos, coroados por abraços quentes de seus bracinhos curtos. Ainda menina era a companheira e pau pra toda obra da irmã, que muitas vezes abusava de seu amor e generosidade: "se você contar pra mãe, maninha, ela vai me bater...". E ela se calava, e a vida continuava sem dramas, sem traumas, suas tramas.
Ela foi protagonista de infinitas histórias que hoje, todos adultos, nos matam de rir ao recordar: o sono escondido sob a cama da avó, enquanto todos desesperados procuravam por ela na vizinhança e no quintal cheio de buracos e armadilhas pra uma criança de ano e pouco; o soco inesperado nos órgãos genitais do pobre guarda da cinderela que a quis barrar na oitava vez que ia pro colo da princesa; lembrar a pinta na bunda da mãe ao ver uma bruxinha na feirinha em Curitiba; elogiar a fanta do almoço de domingo; sair sangrando no colo da mãe quando bateu pela trocentésima vez a cabeça no mesmo lugar... e tantas e tantas outras histórias!
Ela aprendeu a ler sozinha aos cinco anos, enquanto a mãe não se tocava de seu progresso na escola, cu-ti-sa-nol. Ela tinha a inocência e a ingenuidade deliciosas que a faziam tão especial "você tá nervosa, mãe?" ... grampeador na parede, "agora não, filha.".
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Mas como a Graci tá descobrindo, e um dia eu também descobri, os dias passam. Transformam-se em meses, anos, e os filhos crescem. Em determinado momento, pra eles, é muito importante sua posição no grupo e ser respeitada por ele. Aí, um dia, sua mãe faz algo que acha que é pra protegê-la, mas que a magoa muito - ainda que a amiga estivesse errada. Depois, a tia coroa esta história de maneira espetacular. E ela perde a amiga, e deve ter sido horrível pra ela. Mas é mais uma história pra contar. Como quando se mudaram, ela e a mãe, pra uma "ilha paradisíaca, a quarenta minutos de Salvador". Aquela menina, sempre tímida e insegura, desabrochou. Explodiu em cores e nuances e amigos. Bob Pop.
E sempre a melhor aluna, a mais inteligente. Sem ter que fazer força pra isso. Professores ferrando a sala toda pra ferra-la também, o que acontece? É a única que tira nota azul. Isto não me surpreende, desde pequena eu amava reuniões de pais e mestres, para ela e a irmã eram só elogios, e esta mãe que é pouco coruja inflava feito sapo cururu e saia com aquele sorriso que dizia: "Minha filha!" "Minha filha!" enquanto pais não tão sortudos suspiravam por não terem filhos assim... :)
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Na televisão, um programa de combinação. Quem descobrir os olhos, nariz, boca e cabelos escolhidos para o boneco pela produção, ganha uma moto. E caracas! Acontece de primeira! Mãe e filha na sala.
"Mãe, sabe qual a possibilidade de que isto aconteça assim, de primeira???"
"Não, filha."
Papel e lápis, algumas continhas rápidas, e uma resposta certeira, que agora me foge à memória. Você conhece alguém que goste disso? Que se divirta com isso? Pois eu conheço, e me divirto junto. E fez falta não ter prestado atenção, no último concurso que fiz, quatro questões sobre o mesmo assunto. E errei todas.
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Dividindo um apartamento em frente ao mar, dormindo ao som das ondas. A mãe, deitada na rede na varanda do quarto, no andar de cima. A filha deitada no colchão na varanda da sala, abaixo. Olhando estrelas, conversando sobre constelações, sobre a vida, sobre o mar, sobre amar, sobre viver.
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Domingos de lancha e ferry e shopping em Salvador. Lanche, cinema, sorvete.
"Meu queixo está sujo como o seu, filha?"
"Mãe!!!!!"
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Eu podia continuar falando e falando e falando.
Falando de como ela é iridescente e de como faz diferença na vida de algumas pessoas.
De como ela não é nem um pouco igual ao resto do mundo.
E de como ela faz o mundo melhor por ser como ela é.
De que não, ela não vai conseguir salvar o mundo sozinha, nem Jesus, ou Gandhi, ou Madre Tereza conseguiram.
De que ela é especial justamente por seus defeitos e qualidades. E por ter consciência dos primeiros, e tentar melhorar sempre.
De que ela é insubstituível no coração e na vida de quem a ama.
De como ela faz toda a diferença na minha vida, e de como sou uma pessoa muito melhor por ter tido o privilégio de partilhar o caminho com ela.
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Mas não vou falar nada disso.
Vou terminar com Quintana e Drummond, que amo.
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SIMULTANEIDADE
Eu amo o mundo! Eu detesto o mundo!
Eu creio em Deus! Deus é um absurdo!
Eu vou me matar! Eu quero viver!
Você é louco?- Não, sou poeta. Mário Quintana
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"No fim tu hás de ver que as coisas mais leves são as únicas que o vento não conseguiu levar: um estribilho antigo, um carinho no momento preciso, o folhear de um livro de poemas, o cheiro que tinha um dia o próprio vento..." Mário Quintana
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"Ninguém é igual a ninguém. Todo o ser humano é um estranho ímpar." Drummond
"Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo." Drummond

terça-feira, 16 de março de 2010

Estou lendo...

... "Outras Palavras", de Lya Luft.
Que sou fã confessa dela, é fato. Os motivos, deixo pra outra hora. Agora peço licença e transcrevo um texto que amei, dentre tantos. Mas hoje este é o que fala mais fundo ao meu coração, e quero partilhar.

*****

Família:
conflito e transformação.

Em nossas opções se revela o que pensamos merecer: relação amorosa, trabalho, prazer, tipo de vida, família que constituímos, como nos cuidamos ou como nos destruimos.
Em fases diversas faríamos escolhas diferentes: alguns valores mudam junto conosco.
A família, esse chão sobre o qual caminharemos pelo resto da vida, mais esburacado ou mais sólido, mais ensolarado ou mais sombrio, não é uma escolha nossa.
Nascemos nesse grupo, com o qual eventualmente nem gostaríamos de conviver. Por ele somos parcialmente moldados, condenados ou salvos. Dele nos ficarão memórias ternas, o necessário otimismo e segurança, ou autoestima baixa e processos destrutivos.
Esse pequeno território é nosso campo de treinamento como seres humanos, num misto de amor e guerra: embora sendo do mesmo sangue, pais, irmãos e filhos não são necessariamente da mesma raça espiritual.
Para indagar o que seria uma família positiva (não gosto dos termos "normal" nem "saudável"), deixemos de lado os estereótipos da família sem conflito. Vamos esquecer a mãe vitimizada que gera culpa e raiva, o pai provedor tantas vezes sem espaço para ter, ele próprio, carinho e escuta, e os filhos talentosos, gentis e equilibrados.
Mesmo sem nada disso, a boa família é possível.
Como a definir? Como aquela que, mesmo se não nos compreende e até desaprova alguma escolha nossa, nos faz sentir: lá sou aceito e respeitado, lá me querem, lá tenho um lugar.
Idealização? Não creio. Fantasia é esperar que pais, irmãos e também filhos nos amem sem condições, nos aprovem integralmente, cuidem de nós a qualquer preço e queiram antes de tudo o nosso bem. A mãe não é invariavelmente uma santa, o pai um varão exemplar, o filho um cidadão estabelecido e sempre a postos quando os adultos esperam respeito e precisam d ecarinho.
Pais e mães são apenas humanos. Filhos são apenas humanos.
Crescendo saudavelmente, os filhos serão menos centrados nos pais do que em sua própria vida, e isso é bom: não é desamor, é amadurecimento e autonomia. A nós adultos cabe ter para eles ombro ou colo quando precisarem, sem estorvar quando buscam seus caminhos, eventuamente até controlando nossa angústia pelo destino deles.
Vale mencionar o que desejamos para eles: que sejam ricos, poderosos, belos e admirados, ou simplesmente felizes? Que conquistem a glória que nós ambicionamos, ou que sigam seu próprio caminho?
Nenhuma relação subsiste - a não ser doente - sem conflitos na busca dos espaços individuais. A família atual tem boas chances de transformação positiva. Naõ precisamos ficar juntos por preconceito, acomodação ou culpa, mas porque nos faz bem, porque nos torna seres humanos melhores, campazes de ter - e dar - mais alegria.
Mesmo que nos separemos, ou porque filhos vivem suas vidas ou porque às vezes pais se separam (sem deixar de ser pais e mães daqueles filhos), alguma forma de afeto pode persistir, e expandir-se como respeito e aceitação.
Assisti recentemente, com grande tristeza mas admiração ainda maior, pai e mãe, separados mas amigos, despedindo-se de uma filha muitíssimo amada, morta em plena juventude.
Sofriam uma perda inimaginável, que lembrava a todos nós, seus amigos, a nossa própria assustadora fragilidade. Nunca esquecerei a postura desses pais no sofrimento, os cuidados um com o outro, a inclusão de amigos e novos cônjuges no seu momento trágico, assim prestando uma homenagem ainda mais especial à filha que perdiam.
Seria comum essa transformação e multiplicação de afetos, na dor e na alegria, se em lugar de egoístas e confusos, fôssemos maduros e equilibrados.
Mas nesse caso, escritores, psiquiatras, antropólogos, sociólogos e tantos outros profissionais da alma humana ficariam privados de uma intrigante fonte de trabalho e reflexão. (Lya Luft)


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segunda-feira, 8 de março de 2010

A nós



Dia Internacional da Mulher. Mais um. De novo. Hoje os homens fingiram que sempre nos tratam bem, lembraram que somos importantes em suas vidas e nos parabenizaram. Ganhamos rosas, bombons, elogios. Sorrisos.
Amanhã, novamente, vamos acordar com a impaciência de quem não sabe preparar o próprio café. Com o guarda-roupa todo e nada para usar. Com o chefe nervoso por qualquer motivo e com o colega da mesa ao lado sem nem lembrar de nos dar bom dia. Porque dia da mulher é só um. Ainda bem.
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