terça-feira, 16 de março de 2010

Estou lendo...

... "Outras Palavras", de Lya Luft.
Que sou fã confessa dela, é fato. Os motivos, deixo pra outra hora. Agora peço licença e transcrevo um texto que amei, dentre tantos. Mas hoje este é o que fala mais fundo ao meu coração, e quero partilhar.

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Família:
conflito e transformação.

Em nossas opções se revela o que pensamos merecer: relação amorosa, trabalho, prazer, tipo de vida, família que constituímos, como nos cuidamos ou como nos destruimos.
Em fases diversas faríamos escolhas diferentes: alguns valores mudam junto conosco.
A família, esse chão sobre o qual caminharemos pelo resto da vida, mais esburacado ou mais sólido, mais ensolarado ou mais sombrio, não é uma escolha nossa.
Nascemos nesse grupo, com o qual eventualmente nem gostaríamos de conviver. Por ele somos parcialmente moldados, condenados ou salvos. Dele nos ficarão memórias ternas, o necessário otimismo e segurança, ou autoestima baixa e processos destrutivos.
Esse pequeno território é nosso campo de treinamento como seres humanos, num misto de amor e guerra: embora sendo do mesmo sangue, pais, irmãos e filhos não são necessariamente da mesma raça espiritual.
Para indagar o que seria uma família positiva (não gosto dos termos "normal" nem "saudável"), deixemos de lado os estereótipos da família sem conflito. Vamos esquecer a mãe vitimizada que gera culpa e raiva, o pai provedor tantas vezes sem espaço para ter, ele próprio, carinho e escuta, e os filhos talentosos, gentis e equilibrados.
Mesmo sem nada disso, a boa família é possível.
Como a definir? Como aquela que, mesmo se não nos compreende e até desaprova alguma escolha nossa, nos faz sentir: lá sou aceito e respeitado, lá me querem, lá tenho um lugar.
Idealização? Não creio. Fantasia é esperar que pais, irmãos e também filhos nos amem sem condições, nos aprovem integralmente, cuidem de nós a qualquer preço e queiram antes de tudo o nosso bem. A mãe não é invariavelmente uma santa, o pai um varão exemplar, o filho um cidadão estabelecido e sempre a postos quando os adultos esperam respeito e precisam d ecarinho.
Pais e mães são apenas humanos. Filhos são apenas humanos.
Crescendo saudavelmente, os filhos serão menos centrados nos pais do que em sua própria vida, e isso é bom: não é desamor, é amadurecimento e autonomia. A nós adultos cabe ter para eles ombro ou colo quando precisarem, sem estorvar quando buscam seus caminhos, eventuamente até controlando nossa angústia pelo destino deles.
Vale mencionar o que desejamos para eles: que sejam ricos, poderosos, belos e admirados, ou simplesmente felizes? Que conquistem a glória que nós ambicionamos, ou que sigam seu próprio caminho?
Nenhuma relação subsiste - a não ser doente - sem conflitos na busca dos espaços individuais. A família atual tem boas chances de transformação positiva. Naõ precisamos ficar juntos por preconceito, acomodação ou culpa, mas porque nos faz bem, porque nos torna seres humanos melhores, campazes de ter - e dar - mais alegria.
Mesmo que nos separemos, ou porque filhos vivem suas vidas ou porque às vezes pais se separam (sem deixar de ser pais e mães daqueles filhos), alguma forma de afeto pode persistir, e expandir-se como respeito e aceitação.
Assisti recentemente, com grande tristeza mas admiração ainda maior, pai e mãe, separados mas amigos, despedindo-se de uma filha muitíssimo amada, morta em plena juventude.
Sofriam uma perda inimaginável, que lembrava a todos nós, seus amigos, a nossa própria assustadora fragilidade. Nunca esquecerei a postura desses pais no sofrimento, os cuidados um com o outro, a inclusão de amigos e novos cônjuges no seu momento trágico, assim prestando uma homenagem ainda mais especial à filha que perdiam.
Seria comum essa transformação e multiplicação de afetos, na dor e na alegria, se em lugar de egoístas e confusos, fôssemos maduros e equilibrados.
Mas nesse caso, escritores, psiquiatras, antropólogos, sociólogos e tantos outros profissionais da alma humana ficariam privados de uma intrigante fonte de trabalho e reflexão. (Lya Luft)


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